Diversidade de Retratos da Dança ilustra uma arte transformadora
Na quarta temporada, o Retratos da Dança faz jus ao nome e apresenta uma variedade de visões e perspectivas sobre a arte e a dança. Desde intervenções artísticas nas ruas de Ouro Preto, até grupos de dança urbana formados por jovens periféricos, o programa apresentou diversos perfis da dança, que se destacam em Minas Gerais. Aqui, revisitamos algumas das reflexões propostas pelos convidados do programa, que desenham um complexo panorama sobre essa manifestação artística.
Dançar é educar
O papel social da dança foi algo destacado por diversos convidados ao longo da temporada. Uma das formas que esta arte contribui para a sociedade é com um papel central na educação. Para a fundadora do Corpo Cidadão, Miriam Pederneiras, a arte e a educação não podem estar separadas. “Se os professores das escolas pudessem vivenciar arte, eles iriam entender muito melhor o que são seus alunos, a diversidade de seus alunos. A arte tem um papel fundamental no desenvolvimento do indivíduo, portanto ela tem um papel fundamental na educação”, afirma.
A artista, que é também uma das fundadoras do Grupo Corpo, acredita que um papel fundamental nessa formação das pessoas, passa pela inclusão. No Corpo Cidadão, um dos pilares do trabalho está na garantia de ocupação dos espaços, por diferentes grupos sociais. “Não é porque o jovem sai da periferia que ele não pode acessar os espaços públicos ou mesmo os espaços privados”, declara.
O trabalho de educação baseado na diversidade também é base do trabalho no Mergulho EnCena. Regina Amaral, uma das idealizadoras do projeto, reforça a importância do espaço de dança para fomentar o pensamento. O grupo é aberto, para quem se interessar entrar e sair quando quiser, assim, pretendem ir construindo camadas de conhecimento.
Com esta mentalidade, o EnCena se define como um coletivo de “artecientistas”. “A gente pesquisa, cria e aproveita isso nas nossas criações”, explica Regina.
Na Mimulus Cia. de Dança, este estímulo à formação de indivíduos também se dá por meio do livre espaço para a criação. O coletivo promove temporadas gratuitas de espetáculos, visando alcançar principalmente estudantes da rede pública. “São crianças e adolescentes, que muitas vezes nunca tiveram a chance de ir a um teatro, a um espetáculo de dança. Então, a gente proporciona isso para eles e é muito gratificante”, comenta Jomar Mesquita, diretor da companhia.
A companhia também atua no estímulo à cultura e educação por meio do fornecimento de conteúdo gratuito para as escolas. Com materiais sobre Arthur Bispo do Rosário, por exemplo, o grupo proporciona aos estudantes a oportunidade de manusear e se aproximar das artes plásticas.
As ruas de Minas como palco
A quarta temporada do Retratos da Dança levou o espectador por diferentes palcos no estado e para muito além dele. Para muitos dos artistas e grupos convidados, as próprias ruas e espaços públicos de Minas são os principais palcos. Desde intervenções artísticas, até a ocupação de espaços “abandonados”, o programa mostrou como a dança pode chegar a diversos lugares.
Um exemplo disso é a montagem da videodança “Muitas”, de Luísa Machala. A obra foi realizada em um prostíbulo desativado na rua Guaicurus, com a participação de sete dançarinas. As artistas realizaram uma imersão no espaço, em que criaram uma videodança pensada para aquele lugar. “Foi uma experiência fortíssima, eu nunca tinha entrado num ambiente como esse. Dava para sentir as frestas daquele lugar”, comenta a diretora.
Na Quik Companhia de Dança, a ocupação dos espaços populares está na base das criações. O grupo utiliza técnicas de improvisação, interagindo com o público e quebrando a quarta parede em suas intervenções artísticas. “A empatia que é criada com o público, o traz para dentro do trabalho. Então é interessante estar fazendo o trabalho nesses espaços”, comenta Letícia Carneiro, da companhia.
Este aspecto da performance também está presente no trabalho de Christina Fornaciari. A artista também se envolve diretamente com o público em suas criações. Ela destaca a importância da entrega do artista nessas ocupações, já que “a performance traz o que há de bom e o que há de ruim nas pessoas”. Para isso, Christina busca materiais, fatos sociais, espaços e imagens, que inspiram suas criações.
A diversidade também dança
Outro aspecto da dança que fica claro na quarta temporada do Retratos da Dança é a importância da diversidade dos coletivos. Na Cia Ananda, por exemplo, uma das vertentes é a pesquisa do trabalho da dança com pessoas autistas. Anamaria Fernandes, fundadora da companhia, tem mais de 15 anos de experiência com esse grupo. Segundo ela, a Ananda é pioneira na pesquisa de dança com pessoas autistas.
Para Luana Magalhães, integrante da Cia Ananda, a variedade nas limitações e nas potências dos dançarinos amplia o poder da arte que surge no grupo. “A gente não parte de um lugar de incluir pessoas a partir da diferença delas, a gente usa a diferença para começar uma criação”, afirma.
Na Cia Fusion, a diversidade é baseada na própria cultura mineira. O grupo apresenta espetáculos baseados na literatura e na cultura negra. Na obra “Pai Contra Mãe”, o diretor da companhia, Leandro Belilo, conta que o coletivo se inspirou em Machado de Assis. Um conto do autor que fala da época da escravidão, que soa muito atual e permitiu ao grupo levar a literatura de Machado a pessoas que não tiveram acesso.
Outra pauta levantada no programa foi a defesa dos direitos das mulheres, por meio da apresentação do grupo PlaylistA. O coletivo é movido pela temática feminina, partindo das próprias experiências das artistas. Elas começaram também a escrever cartas umas para as outras, o que evoluiu para o recebimento de cartas de outras mulheres. Tudo isso serviu de inspiração para a criação na dança, baseada no universo feminino.
Remédio para lidar com tempos de crise
Parte da quarta temporada do programa foi gravada já durante a pandemia da Covid-19. Para alguns dos convidados, a dança teve inclusive um papel primordial na sobrevivência durante esse período difícil para as manifestações culturais.
A Cia de Dança No Ar foi uma das que precisou se reinventar durante esse período fora dos palcos. Com muitas experimentações sobre a expressão corporal, a dupla se reencontrou na dança em vídeo. Outro aspecto deste período explorado na companhia foi a questão do confinamento, que trouxe um fator mais intimista para as criações do grupo.
“Diante de todos os ataques que a arte sofreu, agora a gente está vendo que isso é uma questão de saúde pública. A gente precisa de arte para crescer, enquanto ser humano, enquanto sociedade, enquanto nação”, afirma Sérgio Penna, um dos idealizadores do coletivo. “Nesse momento, isso ganha uma dimensão tão mais necessária, que é importante pra gente”, acrescenta Ana Virgínia Guimarães, também da Dança no Ar.
Para a dançarina Carolina Correa, sobreviver de arte é sempre difícil. “É muito amor, é querer demais, é fazer com muita paixão. Porque se for depender do retorno financeiro, a gente vai paralisando”, afirma.
“A pergunta que a gente sempre faz lá no fundo é: você conseguiria ficar sem fazer a sua arte? Se você responde que não, continue. Com crise, com pandemia, com as dificuldades financeiras, é continuar em movimento”, acrescenta.
Quem dança fora da caixinha
Uma coisa que fica clara no Retratos é que existem diversas formas de se expressar através da dança. Mas em alguns casos, a criatividade é levada ao extremo e artistas mostram um aspecto raramente visto dessa arte.
Um deles é Lourenço Marques, que baseia sua dança na interação com diferentes materiais. O artista conta que em sua experiência, foi treinado para saber onde é o ponto de partida e saber onde quer chegar. “Na dança não existe isso, você não pode perder a presença. É uma forma de animar a vida”, comenta.
Para Lourenço, essa espontaneidade da dança também está muito presente no trabalho que realiza com objetos. Ele explica que, assim como as pessoas, o material também tem uma história. E, assim como o dançarino, o ambiente muda o movimento do material. “Quando eu moldo uma coisa, ela me molda de volta. A ideia institucionalizada de dança nunca funcionou para mim. Eu abraço a dança do erro”, declara.
Assim também é a dança de Haroldo Alves. “Eu imagino que eu sou um animal. Homem, mulher, animal. Quando você coloca sua emoção, seu ritmo do coração, é muito mais presente”, declara. O artista, sem formação acadêmica formal na dança, afirma que conseguiu se encontrar nessa arte. Após passagens pela Companhia Butô, Haroldo se destacou pela capacidade de expressar corporalmente seus sentimentos.
“A arte abriu meus olhos para acreditar sempre no que eu faço. Me permite viver da minha expressão corporal, dentro de um movimento cultural. A minha proposta é ainda mais difícil, principalmente pra mim, que surgiu das cinzas, sem a academia e hoje estou aqui participando de um programa tão legal que fala da dança”, conclui.
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